Caldeira à Bocacheia

Para fazer uma boa caldeirada é preciso levantar cedo. Quando mais cedo entrarmos no mercado do Livramento melhor sai a caldeirada. É um facto! Quando ainda são as luzes dos candeeiros que iluminam as bancas, é precisamente nessa hora que se deve ir comprar o peixe. Comecemos pela enguia, basta uma. Mas das grossas, aí da largura do pulso de uma criança. Uma enguia remexida, das apanhadas nessa noite. A enguia depois de amanhada viva enquanto se contorce nas mãos do exímio peixeiro, entra para o fundo do saco e espera. Venha o charroco, Caruso de alcunha, porque muitas horas depois de capturado ainda canta a opera da sua morte e cativeiro. O charroco deve ser castrado e esfolado por mãos experientes e o seu sangue não deve cair em vão e cada gota deve ser aproveitada para dar o precioso sabor. Venha meia raia da rocha, cortada aos pedaços e fielmente acompanhada do seu próprio fígado. Um robalote de palmo e meio estripado e muito bem escamado. Venham duas postas de ratão. Entra também uma posta generosa de corvina cortada ao meio. Disse corvina, não disse corvinota! Os entendidos perceberam. Aos outros,eu explico: se o peixe tiver o tamanho de uma perna de um adulto é corvina, se for do tamanho de um braço é corvinota... Por isso repito, uma posta de corvina cortada ao meio. Uma posta aberta de safio . E já agora uma meia dúzia de ameijoas da pedra, escuras e gordas por dentro que cospem agua do mar a quem passa. Por fim uma sardinha ou duas para dar sabor. Mas para dar sabor, escamada e inteira. Procurem-se as cebolas. Grandes saborosas das que fazem chorar só de olhar para elas. Mais uns tomates maduros, uns quatro. Do tamanho de punhos fechados, regados e criados com carinho. Depois os pimentos, quatro, dois verdes e dois vermelhos, mas pimentos verdadeiros. E seis batatas médias, novas, daquelas boas, que ate em cru dão vontade de morder. Alhos, miudinhos e intensos, uma cabeça picadinha. Uma folha de louro e quatro malaguetas queimosas. E um molho de cheiros, que são os coentros e a salsa. Agora que já temos os ingredientes é tempo de voltar para casa para iniciar o sagrado ritual de cozinhar a caldeirada. O peixe não se lava. O peixe vem lavado. Salga-se o peixe e aproveita-se o sangue que ficou no fundo do saco e vai com o peixe para a panela. Lá dentro, a tapar o fundo da panela já está azeite, os alhos, as malaguetas partidas e as folhas de louro. Por cima vão as ameijoas. Vem a primeira camada de cebolas sobre as ameijoas mais batatas também cortadas às rodelas. Mais um tomate pelado e cortado em pedaços e mais umas tiras de pimento verde e vermelho misturadas. Entra o peixe. As enguias e a postas do ratão. Na cama que o ratão e as enguias fizeram, deitam-se mais cebolas e batatas às rodelas, estas um bocadinho mais estreitas que as irmãs que chegaram antes. Em cima o tomate e o pimento. Venha mais peixe: a corvina, a raia, o robalote e o safio. Tapa-se tudo com a ultima camada de batatas e cebolas em rodelas finas e com o resto do tomate e pimento. Em cima poe-se a esquilha a descansar ao lado do figado da raia. Ainda em frio, rega-se a instalação que se fez com um vinho branco. Acende-se o fogo, baixinho, tapa-se e deixa-se a magia acontecer. Vamos dar tempo ao tempo para que os sabores se juntem e que se crie o caldo. Sugiro continuar no branco, e para entreter, umas azeitonas com pão. Na panela a caldeirada já subiu. A sardinha voltou a nadar, agora num mar de sabores e o figado da raia está cozido. Mergulha o molho de cheiros e apaga-se o lume. Tapa-se e esperamos cinco minutos em silêncio contemplativo. Agora sim, pode ser servida a caldeirada e deixar feliz e alimentado quem dela comer.

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